François Marie Gabriel Delanne nasceu em Paris, no dia 23/3/1857, ano de lançamento de "O Livro dos Espíritos". Seu pai, Alexandre Delanne, muito amigo de Allan Kardec, era espírita e sua mãe, Marie Alexandrine Didelot, era médium e contribuiu na codificação do Espiritismo. Gabriel foi engenheiro e dedicou-se ao Espiritismo Científico, tendo buscado sua consolidação como uma Ciência estabelecida e complementar às demais. Fundou a União Espírita Francesa, a revista "O Espiritismo", além de ter publicado vários livros. Desencarnou no dia 15/2/1926, aos 69 anos.
Semana 253
Quem educa sentimentos, educa comportamentos:
da preguiça ao amor
Sonia Hoffmann
"Ousa saber! Começa!" Este pensamento é trazido, em épocas antes de Cristo, pelo poeta e filósofo romano Quinto Horácio Flaco.
"Ousa saber, começa", é completado por Allan Kardec, no século dezenove, com: "Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento. Instruí-vos, este o segundo”.
Então, temos cinco apontamentos: ousar, saber, começar, amar, instruir-se, os quais se fundem e interatuam.
Ousa saber, ousa ser, ousa conhecer para começar a mudança interna, para deixar a animalidade e passar à humanidade, para deixar os instintos e alcançar os sentimentos, as virtudes, ousa saber para abandonar a estagnação, a inércia, a fragilidade e conhecer as leis divinas, que estão inscritas na consciência, e que regem a felicidade para a qual Deus criou a todos. Ousa saber para começar a transformação moral, vitalizando, dando vida ao amai-vos. Ousa saber e começa a instrução, a educação para o bem.
Kardec (2013b), na questão 919 de O Livro dos Espíritos, pergunta aos Amigos Espirituais: “Qual é o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?” A resposta surge prontamente: "Um sábio da antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo”.
Esta inscrição, deixada no Templo de Apolo, nos remete à necessidade do autoconhecimento, da conquista consciente, equilibrada e saudável do si fundamentada na fé raciocinada. O processo, no entanto, é doloroso porque implica ruptura, abandono, renúncia e requer esforço, trabalho contínuo.
Novamente, para nossa orientação, recebemos outra mensagem através do Evangelho segundo o Espiritismo: "Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más" (Kardec, 2013a).
Más tendências e más inclinações? Como assim? Eu, eu sou a vítima das circunstâncias! Isto podemos alegar. Muito bem, ninguém contou? Pois é... vitimização, comodismo, complexos, insegurança, culpas, passividade, melindres, narcisismo (eu sou o cara, a poderosa), agressividade, preguiça física e ociosidade espiritual para a mudança também são más inclinações que precisamos nos esforçar para modificar! Precisamos aprender o sim sim, não não, sem uso de máscaras, sem subterfúgios, sem segundas intenções, sem desculpismos ou promoção de ganhos secundários.
As crianças aprendem a fazer isto com os adultos, não é? Ficam doentes uma vez, a mãe dá toda a atenção, a comidinha que mais gosta, não vai à escola, nem precisa tomar banho... Daí começa a repetir porque sabe que terá ganhos secundários. Somos iguais, de vez em quando de forma mais elaborada. Presentinhos, gorjetinhas nem sempre porque reconhecemos o esforço do outro, mas porque queremos ser bem tratados, lembrados.
Transformação moral nos convoca ao autoconhecimento, à identificação de quem realmente somos - sem idealizações, sem ilusões. Precisamos ousar saber que sentimentos e padrões comportamentais possuímos (como funcionamos), e aqueles que ainda estão por serem descobertos em cada um. Contudo, para realizar este autoconhecimento é preciso querer, disponibilizar-se a ter coragem para olhar-se sem fuga, sem pânico. É necessário ter coragem e ânimo - como alguém que encontra pela frente uma casa muito necessitada de limpeza e organização. Mas nada de colocar as sujeiras para baixo do tapete ou dentro de uma gaveta: um dia, o tapete será erguido e a gaveta será aberta. Se negarmos ou escondermos os sentimentos de nós mesmos, nos intoxicamos com os sentimentos adormecidos ou que temos gritando em cada um, dificilmente poderemos identificá-los, não poderemos entender os seus disfarces, não poderemos educá-los, não conseguiremos tratar cuidadosamente deste homem velho que habita em nós.
Tão importante quanto esta identificação, é a aprendizagem individual da reciclagem de energias, ou seja, aprender a reaproveitar a energia dispensada na manutenção de sentimentos adoentados, fragilizados, usando esta força na tarefa da renovação. Quantas vezes ficamos remoendo mágoas, relembrando episódios de tristeza e violência, emitindo pensamentos de despeito, raiva, fofocando maledicências, elaborando sonhos e ilusões que não têm a menor chance de acontecer, ou então, totalmente inúteis. Isto tudo provoca um gasto energético grandioso e ainda por cima nos faz um mal danado, assim como para as demais pessoas que estão em nosso campo vibratório.
Após a identificação das imaturidades que alimentamos em nossa trajetória, começamos a autoeducação destes sentimentos e, como consequência, dos comportamentos. Logo, além do esforço, da honestidade emocional, precisamos de coragem - o que não significa não ter medo, mas mesmo com medo acreditar e seguir em frente nesta tarefa libertadora. Precisamos disciplina e responsabilidade.
Responsabilidade? Opa. Fiz tal coisa porque fulano disse, minha mãe mandou, meu marido quis, meu chefe decidiu... fiz tal coisa não porque eu quisesse, mas porque é o melhor. Muito bem, mas quem fez a opção, quem teve o livre arbítrio para aceitar ou não fui eu. Nem sempre e na maioria das vezes isto revela muito menos renúncia do que realmente pensamos. É tão bom, traz um ganho secundário a vitimização gerada pelo comodismo, passividade, preguiça mesmo. Vejam aquela foto, todos rindo e eu, pobrezinha de mim, triste, sobrecarregada, cansada, esgotada, Vítima. Estamos sobrecarregados por quê? Porque alguém não faz a sua parte, porque queremos poupar alguém, porque demoram muito para fazer algo e não fazem direito... Será? Será que o disfarce e a máscara estão atuando? Será que é porque sou prepotente e penso que posso fazer melhor, porque quero me supervalorizar, porque sou autoritária e centralizadora mesmo. Por que me é tão difícil deixar que os outros sejam tão aprendizes da vida quanto eu? Por que não quero que eles sofram? Já paramos para pensar no porquê sofremos? Aliás, por que e para que estamos aqui nesta casa planetária chamada Terra? Para sofrer? Para descansar? Que tal entender que estamos aqui para evoluir, para despertar em nós valores, aptidões e talentos adormecidos, em estado latente ou adoecidos e desviados pelos nossos equívocos e péssimas escolhas. Estamos aqui para evoluir, para nos auto educar, para buscar e amadurecer nossa habilidade em sermos felizes. Mas, preenchemos os nossos dias de tal forma que não deixamos espaço para isto: levantamos correndo, engolimos um alimento, enfiamos uma roupa, vamos para o trabalho, a escola, a academia, o supermercado, a máquina de lavar roupas, as panelas, pagamos conta, entramos e saímos do banco, atendemos celular, ligamos computador, a televisão, o aparelho de som... e onde fica o espaço para nos conectar à meditação, à oração, para a reflexão, para ouvirmos a nós e ao outro sem que fiquemos somente no oi e tchau? Estou na correria, depois falo contigo e o depois se torna amanhã, no mês que vem, na outra encarnação. Onde está o espaço para as aprendizagens nesta imensa escola chamada Terra? Sim, somos responsáveis pela nossa trajetória, nossa evolução é intransmissível, ninguém evolui para mim, simplesmente porque esta é a responsabilidade da própria tarefa.
Aprendizagem requer estudo, estudar a nós mesmos, nossas atitudes, nossas tendências, nossos pensamentos. E ainda temos a insensatez de chamar a atenção do filho, do neto, do namorado, do marido, da esposa: vai estudar, não tem trabalho da escola, da faculdade? E a nossa parte? E a nossa preguiça evolutiva tão bem mascarada pelos afazeres do cotidiano que parecem ser bem mais urgentes e importantes do que nosso amadurecimento moral, espiritual ou tão somente como seres verdadeiramente humanos, amorosos, fraternos?
Até aqui, falamos em identificação dos sentimentos e da sua reeducação, enfatizando tal necessidade em nós, espíritos reencarnados atualmente em corpos etariamente adultos, mas esta é uma tarefa que pode e deve iniciar-se desde o berço: algo que pais, familiares, amigos, profissionais têm o compromisso de compartilhar: auxiliar crianças e jovens a conhecerem os sentimentos, seu modo de atuação, suas possíveis consequências e sua administração.
Todos precisamos da autoeducação, mas que estratégias educativas podemos lançar mão na promoção do amadurecimento moral e espiritual? Amadurecimento moral e espiritual... Como promover este amadurecimento, não o envelhecimento, cuidado: e aqui nossos companheiros que têm uma roupagem corporal mais gastinha talvez não gostem ou gostem muito, mas espírito não envelhece, quem envelhece é o corpo; então, nada de se refugiar no agora que estou velho ou velha posso dizer ou fazer o que bem entendo... as consequências vão surgir e as responsabilidades dos atos também! Mas, como iniciar ou dar continuidade a este processo de educação integral de sentimentos e comportamentos, quais os procedimentos deste ato cirúrgico corretivo?
Joanna de Ângelis (2014) nos traz, no livro O ser consciente, uma receita infalível: "O ser consciente deve trabalhar-se sempre, partindo do ponto inicial da sua realidade psicológica, aceitando-se como é e aprimorando-se sem cessar. Somente consegue essa lucidez aquele que se autoanalise, disposto a encontrar-se sem máscara, sem deterioração. Para isso, não se julga, nem se justifica, não se acusa nem se culpa; apenas descobre-se" (p. 5).
Em continuidade, Joanna indica: “após a identificação segue-se o trabalho da transformação interior para melhor, utilizando-se dos instrumentos do autoamor, da autoestima, da oração que estimula a capacidade de discernimento, da relaxação que libera das tensões, da meditação que possibilita o crescimento interior”.
Ela esclarece cada um destes apontamentos:
- O autoamor ensina a encontrar-se e desvela os potenciais de força íntima.
- A autoestima leva à fraternidade, ao convívio saudável com o seu próximo, igualmente necessitado.
- A oração amplia a faculdade de entendimento da existência e da Vida real.
- A relaxação proporciona harmonia, horizontes largos para a movimentação.
- A meditação ajuda a crescer de dentro para fora, realizando-se em amplitude e abrindo-lhe a percepção para os estados alterados de consciência.
Educação é processo e todo processo requer estratégias, metodologia. Santo Agostinho nos alerta para uma análise diária e junto a esta análise acrescenta-se: renúncia de hábitos nocivos; desfazimento de idealizações e ilusões (redirecionar nossa vontade na mudança, desfazendo os atavismos); desejo por novas conquistas; abandono de vínculos afetivos deturpados e estéreis; vigilância; transformação da culpa em ação regeneradora e construtiva; respeito aos limites (cobranças ou expectativas excessivas, desmotivação, subestimação...); empatia (colocar-se no lugar do outro); alteridade (aceitação do diferente); estudo das reações e intenções; nomear os sentimentos que vivenciamos; escolher um episódio diário e interrogar que sentimento estava por trás daquele acontecimento; evitar mecanismos de fuga e suposta proteção como a negação daquilo que sentimos; admitir o que sentimos; reanálise de tendências que teimam em persistir.
A este repertório de ações, Santo Agostinho ainda assinala: "Dirigi, pois, a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: "Se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar de novo no mundo dos espíritos, onde nada pode ser ocultado?".
Em resumo, precisamos ousar saber quem somos, começar o exercício do (auto)amor e estudar para educar e mudar nossos sentimentos, saindo da inércia, da preguiça e nos tornarmos copartícipes de uma sociedade mais fraterna.
Referências
ÂNGELIS, Joanna de (Espírito). O ser consciente. Psicografia de Divaldo P. Franco.
Salvador: LEAL, 2014. Série Psicológica Joanna de Ângelis, v. 5.
CANHOTO, Américo Marques. A reforma íntima começa no berço. São Paulo: Ed. Bezerra de Menezes, 2003.
FRATE, Rafael. Ouse saber! Tradução de Epístolas 1.2 de Horácio. Estadão, São Paulo, 13 jun. 2020. Seção Estado da Arte. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/literatura/ouse-saber-epistolas-horacio-frate/. Acesso em: 19 ago. 2024.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 131. ed. Brasília, DF: FEB, 2013a.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 93. ed. Brasília, DF: FEB, 2013b.