François Marie Gabriel Delanne nasceu em Paris, no dia 23/3/1857, ano de lançamento de "O Livro dos Espíritos". Seu pai, Alexandre Delanne, muito amigo de Allan Kardec, era espírita e sua mãe, Marie Alexandrine Didelot, era médium e contribuiu na codificação do Espiritismo. Gabriel foi engenheiro e dedicou-se ao Espiritismo Científico, tendo buscado sua consolidação como uma Ciência estabelecida e complementar às demais. Fundou a União Espírita Francesa, a revista "O Espiritismo", além de ter publicado vários livros. Desencarnou no dia 15/2/1926, aos 69 anos.
Semana 286
Generosidade - faceta do amor, conquista no viver
Sonia Hoffmann
"... a par desses desastres gerais, há milhares de desastres particulares, que passam despercebidos: os dos que jazem sobre um grabato (leito pequeno e miserável) sem se queixarem. Esses infortúnios discretos e ocultos são os que a verdadeira generosidade sabe descobrir, sem esperar que peçam assistência". (Kardec, 2013)
Rede de proteção contra o egoísmo, a avareza e o apego, a generosidade representa a ponte para o amor. É a virtude da disponibilidade, do compartilhamento, da doação e do dar-se. É o desejo manifesto de alguém em aproximar outrem da satisfação e da felicidade, através do emprego dedicado de suas energias contidas no pensamento, na ação. Ou seja, é a prática do bem, sem sentir-se sacrificado, focalizando primeiramente o outro e depois o eu, sem o idealismo de esperar retorno, pagamento ou recompensa em nenhum aspecto.
Este atributo moral não depende da condição social, familiar, profissional ou de qualquer outra situação e circunstância. O generoso doa-se e impregna com seu Eu o que compartilha, oferecendo para além da materialidade, sua atenção, tempo, preocupação. Não oferece somente a sobra, mas reparte e disponibiliza até mesmo a melhor parte possuída, tirando de si quando necessário. Não oferece sempre e somente para o outro o preenchimento da falta, da carência, da precariedade, mas inclusive aquilo que o preenche, que o torna feliz.
Quando agregada à coragem, a generosidade traz o heroísmo da transposição de fronteiras e barreiras para doar e doar-se; junto à justiça, promove a equidade isenta de julgamentos e formatações; ligada à compaixão, gera a benevolência na mais ampla acepção e aliada à doçura, torna-se bondade que não humilha, não fere. Está sempre acompanhada pela cortesia, solicitude, afabilidade porque, como sugere André Sponville (1999) no seu livro “Pequeno tratado das grandes virtudes”, o generoso é livre de si, de suas pequenas covardias, pequenas posses, pequenas cóleras, de seus pequenos ciúmes. Portanto, seu propósito está sempre relacionado à conquista do bem-estar momentâneo ou prolongado, constituindo-se o melhor investimento praticado por alguém para prevenir, ou desfazer, a armadilha da miserabilidade material ou emocional de outrem. Então, entende-se que ela não age necessariamente no âmbito do somente pedido, mas igualmente naquilo que é percebido.
De vasta amplitude, pelo menos quatro formas de generosidade são apontadas:
- compartilhamento de ensinos e atitudes geradores de paz interior, de acordo com o comportamento filosófico, cultural e valorativo do outro; - oferecimento de recursos financeiros, intelectuais, afetivos e/ou morais; - oferecimento de proteção, conforto espiritual, moral e emocional, e estímulos de coragem e iniciativa; - oferecimento do tempo, da espera, da escuta ativa, da companhia (mesmo que silenciosa), do caminhar com, do apoio, do incentivo, de emissões de sinceros pensamentos e comportamentos revigorantes e favoráveis.
A generosidade parental (dos pais) consiste um modelo, com riqueza de detalhes, desta virtude, porque é a que mais se aproxima da delicadeza do gesto amoroso e se constrói nos alicerces do vínculo, da confiança, da dádiva e da circulação por transitar, se transmitir, propagar-se e renovar-se continuamente, se for preciso, unindo-se na subjetividade e no desejo de seus filhos conquistarem autonomia, independência, melhoria na qualidade da vida íntima e externa.
A alegria com o sucesso de alguém na execução da tarefa a que se propõe, o aconchego de um abraço, de um sorriso amistoso, de um olhar amigável ou o incentivo à aceitação do desafio, quando é conhecida a verdadeira competência de quem nos relacionamos, exemplificam igualmente a generosidade, pois acontece uma vinculação, um enlace através da confiança, presenteando-o com o afeto, a energia, a credibilidade a qual reúne e reproduz, talvez em novo tempo, circunstância ou com diferente pessoa, uma nova aliança e outro fluxo energético. O mesmo se pode atribuir à generosidade da discordância com a conduta ou com a decisão de alguém, quando tal for necessário, justamente porque neste desacordo também podemos passar para esta pessoa que ela é capaz e livre para tomar suas decisões, assim como nós o somos e, portanto, a relação de confiança e credibilidade novamente se faz presente.
"Somente há legítimo relacionamento, que poderá ser considerado saudável, quando as pessoas ou os seres que intercambiam as expressões de afetividade ou de interesse comum, mesmo que discordando de ideias e posturas tomadas, agem em clima de agradável compreensão, ensejando o crescimento interior." (Ângelis, 2000, p. 138)
No prefácio do livro Cidadela, escrito por Antoine de Saint-Exupéry (2009), encontramos "o que é importante, a gente não vê"... Trata-se de uma realidade duradoura, que nenhum poder e nenhum prazer podem arrancar ao homem: e essa realidade não é o que se recebe ou se tem, mas o que se dá. Eis porque Saint-Exupéry anatematiza (condena) todos os "sedentários do coração", que veem no amor humano a finalidade do homem: pois o amor é, mais do que uma reserva, um exercício do coração, existindo apenas pelo que representa de doação: - "só existe o que tu ofereces...".
Fica claro, assim, que cada um é na realidade aquilo que sente e vivencia em si, no seu íntimo. Mesmo utilizando máscaras, aparências, subterfúgios, seremos sempre o nosso eu interior e não seremos verdadeiramente generosos para conosco se tentarmos negar este eu. Com isto, estaremos negando a nós a chance da reeducação, do resgate, do constituir-se. Cada vez que nos oferecemos uma nova chance de continuidade, de recomeço, de erguimento pelo nosso próprio esforço, estamos cultivando a generosidade para conosco e desenvolvendo a habilidade da autoestima, a qual se expande para fora do ser com a expressão de sincero e sereno convívio com os demais.
Sendo assim, auto generosidade é tão importante quanto aquela projetada para alguém fora de nós, ao mundo. Deste modo, é fácil entender a aceitação incondicional da criatura ainda imperfeita que cada um é, como um ato de generosidade para conosco e para com o outro, porque assim como nos constituímos e nos construímos a partir dele, este outro também se organiza a partir de nós. Somos espelhos de espelhos refletindo seres em evolução, convivendo com recomeçares, desastres, avanços, acidentes, sucessos, incidentes... aprendendo a flexibilidade e a arte do viver.
Contudo, tudo isto somente será possível com a (auto)generosidade que percebe e reconhece os grandes e pequenos, discretos, ocultos infortúnios, dificuldades, carências os quais somente ela sabe descobrir, sem a necessidade de ser esmolada, mendigada ou pedida.
Generosidade é um elo, um caminho para a conquista da grande virtude: o amor. Busquemos esta conquista em nós, mas estejamos sempre alertas porque ela não aceita nem hipocrisia, falsidade, faz de conta: ou somos ou não somos generosos no instante evolutivo. Preciso, com urgência, estabelecer vínculos de recíproca afeição e cordialidade, mesmo porque absolutamente ninguém, em algum momento ou tempo, está totalmente destituído em sua essência de valores morais positivos e da capacidade de interagir por meio de conexões emocionais dignas.
Referências
ÂNGELIS, Joanna de (Espírito). Despertar do Espírito. 8. ed. Psicografia de Divaldo P. Franco. Salvador: Livraria Espírita Alvorada, 2000.
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado de grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 131. ed. Brasília, DF: FEB, 2013. Cap. XIII: Não saiba a vossa mão esquerda o que dá a vossa mão direita.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Cidadela. Porto: Porto Editora; 2009.